domingo, 30 de março de 2008

Os Damaias: Capítulo III - O Regresso

Dito e feito.
No dia seguinte, Hernâni parava na recepção, encarando Farfas com a firmeza das suas costas, passando o dinheiro, previamente surripiado com discrição da caixa registadora do hotel, sobre o balcão, para a reconhecida mão da recepcionista.
- Obrigado. Voltem sempre. - um esgar atravessou a face de Hernâni, que não conteve uma pequena risada.
Saíram, carregados com a roupa que tinham vestida, e voltaram a passear-se pela cidade que não os havia recebido. Esgueiravam-se dos senhores de uniforme que passeavam o pau que traziam à cintura, enveredando por caminhos inexistentes que os levavam a todo o lado, deambulando até por fim chegarem ao Canivete. E como tinha mudado.
Na verdade, não tinha mudado muito. A pedido da população local, o canivete espetado na porta não foi movido. No entanto, a casa, agora pintada de amarelo, emanava um outro ar, uma novidade na Damaia cor de cimento.
- Eh lá, isto está bonito, sim senhor... - Becas passeava boquiaberto pela casa, observando a remodelação. As janelas tinham um caixilho rosa, muito polido, ainda que o vidro continuasse partido. A canalização exterior da habitação fora revestida com uma camada de papel celofane azul bebé, brilhando agora com a pouca luz solar que se dignava a entrar na Damaia.
O quintal também estava transformado. As cadeiras haviam sido limpas, e possuíam agora uma imponente presença nas traseiras da casa, suplantando o facto de não possuírem assento e de terem duas pernas.
- São artísticas. - afirmava Adalberto, que saía da casa para cumprimentar o casal. Envolto numa toalha de banho púrpura, não tardou a aparecer também um jovem franzino, de corpo oleado, à porta de casa. - Este é Monsieur Touma Tesrosa , um sócio meu. É francês, ajudou na remodelação da casa. É engenheiro civil. - acrescentou.
A bengala de Esbéquio já descia sobre a cabeça dos decoradores quando terminou a frase. E voltaria a descer quando visse o interior da casa.

domingo, 16 de março de 2008

Os Damaias: Capítulo III - Lobifarfas

- C'um chavasco!
A porta fechou-se com um estrondo. Hernâni estava lívido, encostado nela. Na verdade, era de facto ele quem segurava a porta.
Ainda sustendo a respiração, conseguiu balbuciar para o interior:
- Como arranjou tanto pêlo? - a voz tremia-lhe de estupefacção.
A resposta não veio sem demora.
- Pus a bruxa nas traseiras.
Hernâni pareceu aliviado, por alguma razão, e esboçou compreensão na face mais branca que já tivera.
- Ela queria abrir um balcão de bruxaria na recepção do meu Hotel, por isso, no interesse de manter a qualidade do estabelecimento, recoloquei-a nas traseiras. Uma semana depois estava com queda de cabelo pelo corpo todo. Agora tenho que fazer depilação completa todos os dias, para manter a boa apresentação para o hotel.
Hernâni deixou escapar uma risada, mas não teve coragem de comentar.
- Mas já acabei, podes vir fazer o que querias.
A lividez voltou a encher a face do Cabo-Verdiano.
- Não é preciso, eu já perdi a vontade... - deu a embaraçosa desculpa enquanto sacudia a poça esverdeada que se estendia no chão perto do seu pé direito.
A porta abriu-se, atingindo Hernâni com a visão da recepcionista mal envolta numa toalha de banho, deixando entrever o pêlo que já começava a surgir nas pernas e braços, para espanto de Hernâni. No entanto, mantendo a pose digna de uma madame, Farfas passou por ele de cabeça erguida, exibindo mais uma vez o buço, de que se tinha esquecido, e piscou-lhe o olho, seguindo-se um sorriso de conotação marota, enquanto subia as escadas para os seus aposentos. Perdido entre a estupefacção e a vontade insuportável de se rir, voltou-se, não deixando de reparar no mar de pêlo que se havia espalhado pela casa de banho, correndo para o quarto, onde Esbéquio e Becas estavam à sua espera.
- Vamos sair daqui.