segunda-feira, 7 de janeiro de 2008

Os Damaias: Capítulo III- A estadia

O tempo passava n'A Colina da Chuva, quase tanto como passava noutro sítio qualquer. Não tanto, porque os relógios estavam avariados, mas ainda assim, passava. E como alguém tinha de fazer alguma coisa com ele, foi-se gastando no hotel, na Damaia, e um pouco por toda a metrópole, até que havia tempo gasto espalhado por toda a parte. Foi gasto em acordar mais cedo que os galos, para criar a sensação de jet-lag, posteriormente usada na deambulação que teimava percorrer a cidade. E quanto percorreram naquela semana!
Enveredaram por caminhos que não conheciam Lisboa, e que Lisboa não conhecia, perdendo-se repetidamente apenas para se encontrarem num sítio onde não estavam. Pairavam em cafés, quase se sentiam clientes até terem de pagar, o que raramente acontecia. Ainda assim, circulavam, ouvindo conversas, por vezes participando nas mesmas, com heterónimos, como Duque da Panólia, ou Esbéquio, que ninguém tomava como nome verdadeiro. Visitaram o metropolitano, sendo esse o seu principal meio de deslocamento pela cidade. E não era fácil caminhar pelos carris.
E toda a exploração que faziam durante o dia terminava nos quartos luxuosos d'A Colina da Chuva. Mas a rotina foi rompida, quando Hernâni explorou mais do que queria ao entrar na casa de banho sem bater três vezes à porta primeiro...
Mistério...

quarta-feira, 2 de janeiro de 2008

Os Damaias: Capítulo III- O Quarto

Esbéquio foi o primeiro a entrar no quarto, visto ter idade a mais para carregar malas, delegando a custosa tarefa no neto que o seguia. A porta impunha tanto respeito quanto uma porta de cartolina pode impor. E que porta era! Um sujeito enfiado num enfezado uniforme de porteiro, que consistia muito simplesmente num pedaço de papel em que se lia «Porteiro» que fita-cola havia prendido á lapela da camisa amarela apresentou-se como um duvidoso Vice-Director Geral de Assistência a Hóspedes, justificando a não-inclusão do título completo no papel de identificação como poupanças internas.
- Asseguro vossas excelências de que esta porta é fenomenal! É uma bomba! Só tem é de ser mudada duas vezes por dia, mas é um mimo! - exaltava assim a entrada do quarto. - Isto é cartolina de fazer barcos! - apregoava face à desconfiança de Esbéquio, que se direccionava mais ao vigário do que à missa.
- Há alguma razão para ser feita de cartolina? - inquiriu Hernâni.
- Regras governamentais, instituição do uso de materiais recicláveis. - era notório que a explicação havia sido memorizada e que não cabia a um subintendente compreender a mecânica da reciclagem. - Instalamos uma de manhã, quando os hóspedes saem, e outra quando entram à noite. Mas isto tem placa dupla, atenção! - pareceu continuar a fervorosa defesa da utilidade da porta de cartolina, mas Esbéquio já tinha ignorado o lacaio, abrindo agora a porta com a bengala, que batia vigorosamente contra a resistente barreira.
- Às vezes empena, é preciso fazer mais força... - explicava o homem, perante as faces risonhas de Becas e Hernâni enquanto oleava os cantos antes de se atirar pela porta, rebolando para dentro do quarto. - Todo vosso. - acrescentou o seu sorriso.
Esbéquio entrou devagar, rosnando por ter de se baixar para caber no buraco que o impacto havia imprimido na placa. Ficou agradado por o quarto ser bastante luxuoso em relação ao que esperava. Duas camas enfeitavam a metade esquerda do quarto, com dois colchões que ondulavam, cobertos por lençóis de látex.
- Colchões de água?
- Vinho branco. Excedemos o limite estipulado por lei, então tínhamos de os esconder.
- Festarola! - gritou Becas, saltando nos colchões. Ainda não tinha saltado duas vezes já uma certeira bengalada se abatia sobre a sua indefesa cabeça.
O resto do quarto era simples, bem ao estilo Lisboeta: tinha uma janela, em que tinham colado um cartaz com uma paisagem parisiense, mas com que Hernâni se deliciava, e um armário pequeno, com duas gavetas, de madeira menos carunchosa do que o resto do hotel. Havia também uma bola de espelhos no tecto, ou o que tal seria, não tivessem sido removidos os espelhos para que juntos fossem colados e pendurados por cima do armário, providenciando um reflexo dividido. A bola, no entanto, tinha sido entretanto revestida com uma minuciosa rede de velas, um efeito inovador na Damaia.
O porteiro retirou-se então, acrescentando à saída:
- A casa de banho colectiva é ao fundo do corredor, batam três vezes antes de entrarem, por favor.

Os Damaias: Capítulo III- A ameaça farfasma

Hernâni foi novamente o primeiro a entrar, em grande parte porque estava melhor preparado para e recepcção que encontrariam. Maravlhados todos pela magnificiência das tábuas que quase encaixavam no tecto, mal se deram conta do seco ganido que fez vibrar o disfarce de abre-latas quando a recepcionista se dirigiu ao grupo:
- Que desejam?
Becas abriu a surpresa boca, engolindo em seco, hábito que tinha adquirido com as refeições que Esbéquio preparava. Esse, por seu lado, abriu os olhos em sinal de respeito, pois havia ouvido falar que tal divindade existia num templo no gana, e ficou deveras impressionado por Portugal possuir um exemplar em tamanho real de sua enormosidade.
- Um quarto para 4. - Hernâni foi corajoso.
- Temos quartos para 1, 2, número de Neper, 3 e pi pessoas, mas não para quatro.- a resposta veio sem nenhuma sombra de explicação. Os cabo-verdianos assumiram que se tratava da designação lusa para anões e outros esquilos. - Como têm um abre-latas recomendo que requisitem dois quartos para 2 pessoas.
O grupo anuiu, desviando-se quando a paquidérmica recepcionista se voltou para procurar as chaves. Podiam jurar que o balcão se tinha inclinado com a passagem do ar. Enfim, entregou a Hernâni as chaves dos quartos 2,89 e 3,wtf.
- Mandámos ampliar o hotel e acabámos com os números para os quartos, então começámos a usar letras, como esse é o primeiro quarto da nova área ficou com as primeiras letras do alfabeto.
O grupo pareceu agradado por aquele hotel aceitar o mesmo alfabeto que Cabo-Verde.
- Muito bem. - Esbéquio notou o ar enjoado do neto e percebeu que era a sua vez de avançar. - Nós vamos então andando para os quartos.
A recepcionista concordou relutantemente, nunca demonstrando a qualquer instante nenhuma réstia de emoção além da desconfiança face ao ar movediço do abre-latas, que rosnou quando passaram pelo buraco no corredor.
Subiram a passos cuidadosos as escadas, que rangiam com o ranger da madeira que tinha sido submetida em pouco tempo a mais peso do que se esperaria numa vida. Becas acabou por partir uma das tábuas, enterrando o pé no buraco que surgiu.
- Não tem mal, temos lareira... - descansou a recepcionista.
Não chegaram a saber se a afarfalhada proposta se destinava à madeira ou a Becas...

Os Damaias: Capítulo III- O homem-cogumelo

E assim, despedindo-se uns menos cordialmente que todos, saíram do beco onde se acharam, perdida a luz do dia no meio da transformação de poliéster, encontrado o beco como o tinham deixado. Novos caixotes circulavam, as mesmas empregadas recebiam pagamento pelo comprado trabalho dos periquitos, picheleiros pelo trabalho que prometerão deixar pronto. Mas não tinha o mesmo brilho, nem a mesma cor que tinha quando o viram pela primeira vez, e quando Becas se voltou para trás no fundo do beco já não via a espelunca de feitiçaria que tinham visitado, sendo acossado de um medo que não sentia desde o dia em que Esbéquio começou a treinar nele as bengaladas que caracterizariam a sua relação. Foi, aliás, numa dessas sessões de treino que Esbéquio tinha dotado Becas de um dos seus traços mais reconhecíveis: o nariz. Uma estranha combinação de falta de prática na arte da bengalada e da vesguice que acompanhava a idade haviam resultado num invulgar golpe na cana do nariz, que permaneceria por muito tempo irreparavelmente molestado, exibindo um pomposo alto no meio da nasalidade.
Não estranhou as artes de feitiçaria que fariam desaparecer a barraca, e girou o cabelo fabulosamente cortado pelos ombros, um duvidoso cogumelo que carregava como prenda de chegada a solo luso de uma local barbearia. Apanhou rapidamente o grupo que já ia avançado, que não andava depressa devido à dificuldade que Nikas apresentava na locomoção com o desajeitado fato, que lhe dava mais altura do que as mulheres que passavam usavam no andar. E assim voltaram a entrar no hotel, confiantes de passar lá a noite. Um ganido sufocado por poliéster fez-se ouvir quando a recepcionista se apresentou ao balcão...

Os Damaias: Capítulo III- Origins

Entraram. Excepto Becas, que ficou a tentar atravessar a estrada. Era um espaço na sua maioria pequeno, pesadamente mobilado: uma mesa de pedra e duas cadeiras de ferrugem. Havia um candeeiro de lava no tecto, e algumas moscas carbonizadas no chão. As paredes eram de madeira coberta com um papel de parede pastoso e de origem duvidosa.
- Gostam das minhas paredes pastel?- era notória a ironia na voz.
Dirigiu-se a uma das cadeiras, deitando um olhar a uma peculiar pintura na parede.
- Não tem nada, mas gosto da moldura. - por esta altura já todos encaravam a bruxa com um sorriso.
Sentou-se.
- Podem sentar-se, desde que não seja na cadeira. Está amaldiçoada. - riu para si, mas a verdade é que ninguém arriscou.
A mesa estava coberta com uma manta do que em tempos havia sido flanela, quadriculada no contraste entre vermelho e preto.
- Era a camisa de um dos clientes. Sentou-se na cadeira...
No centro da mesa havia uma bola de esferovite com estranhas manchas de diversas cores.
- Os mortos não têm preferência por material. - apontando para o cinzeiro à beira da bola, acrescentou - Já estão mortos, não lhes faz mal.
O grupo estava surpreendido com o que se escondia na barraca, mas sentou-se, procurando um espaço seco no chão húmido. A bruxa também se sentou, e principiou o ritual de comtemplação da bola de esferovite. Esfregava as mãos na esfera, produzindo o barulho que dilacerava os tímpanos dos presentes. Havia fechado os olhos, tremendo agora as pálpebras enquanto acariciava as manchas. Por fim, levantou-se, dirigindo-se a Nikas.
- Ora deixa cá ver...- murmurou enquanto a inspeccionava. - Já sei do que precisam.
Voltou-se para um baú inteligentemente escondido por detrás de uma secção pendente de papel de parede, do qual retirou uma enorme tecido vermelho. Deitou-o por cima de Nikas e, muito calmamente e com a plenitude de uma missão completada afirmou:
- Isto é um disfarce de abre-latas. Não faço transformações ao fim-de-semana.
- Hoje é Segunda-Feira. - notou Hernâni.
- Eu é que decido quando a semana deixa de acabar! - o chão humedeceu mais um pouco.
- A propósito, ela não é um cão, é uma cadela. Deve-se ter perdido da dona.
- Viu isso na vossa grande bola da sabedoria, ó ancestral anciã? - Hernâni estava prostrado ao proferir as palavras.
- Não, vi na coleira dela. - havia na sua expressão um impagável gozo em provocar os cabo-verdianos. - São 30 aérios pelo fato e 40 aérios pela visão de sabedoria.
- Aceitas African Express? - Esbéquio retirou o cartão acastanhado da meia esquerda, entregando-o à bruxa.
- Sempre pagaste tudo assim, não foi? - quase lhe piscou o olho, mas conteve-se em frente dos clientes. Afastou-se um pouco, enquanto vestiam Nikas no fato de abre-latas, e regressou com o cartão, entregando-o a Esbéquio. - Bem, já têm o que queriam, agora saiam da minha barraca, antes que vos transforme em sapos.
- Mas não disse que só transformava à semana? - ousou Hernâni.
- Posso-te alugar um calendário para veres que é Segunda-Feira. - Deu uma risada triunfante enquanto fechava a porta de plástico.
Hernâni desabafou:
- Que puta.

Os Damaias: Capítulo III- As Traseiras da Bruxa

Ou melhor, o mágico traseiro do que o grupo assumiu ser a bruxa. Era um visão assustadora, tapava a entrada da barraca onde operava os milenares bruxedos que lhe davam a fama. Ainda assim, aproximaram-se verificando que a mulher estava vergada afagando uma grafonola. Os rostos enterneceram-se com a demonstração de afecto. Foi Hernâni quem se aproximou primeiro.
- Bom dia...- a voz era tímida, apesar do porte de pelicano. Não houve resposta da anciã. - Bom dia!- repetiu Hernâni com ênfase.
A velha virou-se por fim, encarando com espanto Hernâni.
- És feio. - acabou por proferir.- E eu sou cega, por isso imagina o que tens em cima do pescoço.
O cabo-verdiano ficou atónito com a resposta, mas conseguiu balbuciar:
- É a Bruxa das Traseiras?
- Sou, és o transplante de apêndice de que eu estava à espera?
A voz da Bruxa parecia de puro gozo, mas a sua espressão não o dava a entender.
- Penso que não. Está a gozar comigo?
- Estou, demoraste mais tempo a perceber do que eu a regar as minhas grafonolas.
Hernâni parecia desconcertado... Suspirou.
- Ora bem, tenho um trabalho a pedir-lhe. Faz transformações?
- Ah já percebi, daí os lábios de sapo... Queres voltar a ser príncipe?
Hernãni começava a ficar irritado.
- Não, é que precisamos de transformar um cão num abre-latas. - curiosamente, disse isto com a maior das naturalidades.
- Ah, para o hotel, não é? Bem, onde está o bichano?
- Ali mesmo. - Hernâni apontou para Nikas, que olhava para a Bruxa com os olhos grandes de cachorro. Pareceu dar resultado, a velha pareceu sorrir enternecidamente, pelo menos até ver o resto do grupo. Fixou-se em Esbéquio.
- Olha quem é ele... Ainda precisas da bengala para andar?
- Ainda a queres para te deitar?
Um sorriso maroto atravessou a face enrugada dos dois, percebendo-se ali que os dois núbios tinham uma história.
- E tu? Pareces a galinha que não conseguiu atravessar a estrada.- Levantou o sobrolho para encarar Becas, que encolheu o corpo, francamente assustado.
- E este deve ser o canicho, certo?- vergou-se afagando Nikas, que era a única no grupo que não parecia absolutamente estupidificada com a Bruxa das Traseiras.- Gosto dela. É a única no meio de vocês maricas que não está com medo de uma cega de 3ª idade. Sigam-me.
E assim entrou na barraca...

Os Damaias: Capítulo III- "A Bruxa das Traseiras"

Assim que Hernâni se calou, Esbéquio fez-se ouvir:
- Quando eu era cachopo, contava-se uma lenda em Cabo Verde: dizia-se que em Portugal havia uma bruxa, mais antiga que o Mário Soares, capaz de mudar o mundo com um agitar da verruga... mas como era funcionária pública, trabalhava sempre nas traseiras de edifícios...
- Funcionária pública?
- Finanças. E diz-se que onde quer que ela esteja, há alguém com o hálito de 100 russos por perto...
- Então deve estar na traseira deste hotel.- os olhares voltaram-se para Hernâni- Vão perceber quando entrarem...
E com o aviso no ar enveredaram pelo beco que parecia levar à misteriosa traseira do escabroso edifício. A excentricidade presente na coloração do hotel afectava-lhes os olhos de uma maneira que nunca sequer tinham pensado possível, o que levou às mãos em frente dos olhos que os impediram de ver o cenário que os cercava. Prédios carmesim erguiam-se na vizinhança, albergando as gentes humildes que povoavam a Damaia. Empregadas domésticas subornavam os periquitos com alperces para que sacudissem os tapetes enquanto elas viam as novelas, picheleiros arrancavam equipamento sanitário da estrutura, um vendedor de seguros interrompe um jovem casal a aumentar o coeficiente de elasticidade do colchão da cama dos pais... assim se vivia na Damaia, e os olhos do grupo so viam o fim do beco, esperando lá encontrar o que a lenda da sua terra kwanza prometia. E foram andando, passando sem-abrigos em caixotes, sem-abrigos sem caixotes, sem-abrigos lutando por caixotes, sem-abrigos vendendo caixotes, sem-abrigos perguntando porque é que gostam tanto de caixotes. E a tinta nas paredes ia esvanecendo com a aproximação, devido aos sem-abrigo que encostavam os caixotes à parede. E então, as bocas abertas de espanto, lá estava ela, a Bruxa das Traseiras...

Os Damaias: Capítulo III- "Farfalhices"

Uma vida de exposição à cópula de lesmas não poderia ter preparado Hernâni para o choque que o assolou. À sua frente erguia-se a razão pela qual as mulheres são discriminadas na sociedade. Uma bola de vida fitava-o, envergando tudo o que se encontraria num armário. Uma camisola de lã verde cobria uma camisola mais fina, branca. Não se distinguia se havia mais roupa por dentro ou se era resultado da imensa massa corporal e da pobre iluminação, se bem que tudo estava recoberto por um enorme parka castanho com algumas manchas de um misterioso pó branco que impossibilitava o movimento normal. Perto de que algo que remotamente se assemelhava com joelhos, o casaco deixava entrever um par de calças de bombazine amarelas, terminando em esbranquiçados sapatos pretos. E por cima de tudo isto, cabelos castanhos desalinhados cobriam uma cara envelhecida, que transmitia um ar de vagabundo desinteresse. E não era o pó que ela arrastava atrás de si ou as enormes bochechas que lhe pendiam das escavadas olheiras que o assustavam mais, mas sim o odor que transportava. Tentou manter a posição firme, mas não evitou vacilar ligeiramente. Recompondo-se, atreveu-se a perguntar:
- Deixam entrar saca-rolhas?
- Desde que não sejam amarelos, podem entrar.- respondeu prontamente a recepcionista, enviando mais uma baforada para aterrorizar Hernâni.
- Ok, então eu volto mais tarde com um saca-rolhas não-amarelo.- (e uma lata de desinfectante).
Chegado ao exterior do edifício, após uma penosa inalação, Hernâni pôde balbuciar:
- Temos de o transformar num saca-rolhas.

Os Damaias: Capítulo III- "Deixam entrar saca-rolhas?"

Hernâni dirigiu-se a passos largos para a entrada do hotel, quando subitamente se deteve com a visão de um pequeno círculo na porta do edifício. Uma negra mancha canina cruzada por um frio traço vermelho fez com que todos os olhares se voltassem para Nikas.
- Parece que não podes entrar...-suspirou um desapontado Becas.
Mais abaixo, um sinal do mesmo tipo proibía a entrada a chaves de fendas, cuja leitura foi seguida de um moroso despedimento do Sr. Asdrúbal, a chave de fendas de estimação de Becas.
- Espero que encontres bom parafusos por esse Mundo fora...- distinguia-se entre lágrimas.
- Bem, eu vou ver se é possível fazer alguma coisa em relação aos saca-rolhas.- disse Hernâni enquanto entrava no hotel.
A porta de vidro chiou quando Hernâni entrava, e parou quando a expressão de assombrado deleite se estampou na face do Cabo-Verdiano.
O chão de madeira carunchosa vacilou com os passos maravilhados de Hernâni. As paredes de um bege mal pintado estendiam-se até onde o olhar podia ver, porque a seguir o corredor mergulhava na escuridão. Era um corredor muito estreito, apenas duas pessoas podiam caminhar nele lado a lado, a não ser que uma delas fosse obesa. As manchas na pintura devido à humidade contrastavam com a moldura dos dois quadros presentes no hall: uma bola de futebol flutuando num charco de lama e um barco a remos no leito seco de um riacho. Uma etiqueta de 2,5€ no canto inferior de cada um das obras desapontava as especulaçoes sobre o seu valor, fazendo os intervenientes aperceberem-se de que era o trabalho de um menino de tenra idade. Baixando os olhos por um instante, Hernâni deparou-se com algo verdadeiramente surpreendente: um buraco no chão. Não um pequeno orifício na madeira, mas um sincero buracão no atapetamento, coberto com papel de celofane de cor dúbia. Aproximando-se, apercebeu-se do tom amarelo do papel, mas recuou quando viu que o piso era mais escorregadio na zona circundante do buraco. Tiras de pano no tecto remendavam buracos causados pela vida que percorria o interior das paredes do hotel. A luz intermitente no tecto não providenciava a luz que se fazia sentir no corredor. A atenção de Hernâni voltou-se então para uma luz azul que brilhava perto do balcão. Após pensar que se tratava de um simples aparelho para matar indesejáveis insectos acabou por se aperceber, após cuidadosa leitura do rótulo, que se encontrava de facto na presença de um dos raros mata-alces em Portugal, apenas mais uma prova da qualidade do estabelecimento hoteleiro onde se encontrava.
- Necessita de alguma ajuda?- uma voz seca ressoou atrás de si.
O susto quando se virou fê-lo saltar...

Os Damaias: Capítulo III- "A Colina da Chuva"

-Chama-se A Colina da Chuva, ja ficou la hospedado um primo em segundo grau do meu bisavô, um carteiro, vejam lá!- o estatuto social do invocado foi sufuciente para convencer os familiares da adequação do local.
E lá seguiram, três Cabo Verdianos e um cão, em busca de um tecto para passar a semana que Adalberto levaria a completar a renovação d'O Canivete. Percorreram as ruas de Lisboa com passo estugado, pesado pela garrafa que Hernâni transportava. Visto ainda terem algum tempo antes do anoitecer, resolveram parar em algumas das atrações turísticas: urinaram à porta da Torre de Belém, comeram tremoços numa tasca em frente do Mosteiro dos Jerónimos, atiraram rochas a pombos do topo do Padrão dos Descobrimentos, rezaram na Igreja de Sta. Engrácia por um mundo mais etílico, abasteceram-se de especiarias orientais no Bairro Alto e de bens essenciais no El Corte Inglés, desta feita sem o recurso à unidade monetária. Assim passado o tempo, acharam por bem dirigirem-se ao hotel. Quando interrogado sobre o caminho, Hernâni apenas respondeu:
- Relaxem, eles têm chauffeur...- um agradável ar de espanto cobriu Esbéquio e Becas.
Hernâni fez um curto telefonema, após o qual aguardou apenas alguns minutos até se vislumbrar um ponto verde à distância.
-Cá está ele!- exclamou um satisfeito Hernâni.
Num breve momento, uma rã apresentou-se em frente aos três familiares.
-Ela leva-nos ao hotel.- nos rostos de Esbéquio e Becas o espanto transformou-se em desapontamento, que foi seguido de uma bengalada na testa de Hernâni. Resignados lá seguiram a rã até ao hotel. Hernâni ainda tentou meter conversa, mas o batráquio não parecia muito aberto a socialização. Surpreendentemente rápido, encontraram-se à porta de um majestosamente remendado edifício pintado de amarelo, recheado com aleatoriamente posicionadas fracções de um qualquer talento sulista espressando-se na forma de círculos da cor de um nenúfar apanhado num ciclone, ou talvez fosse verde, era um mistério que ocupava os dias da população local. As janelas tinham um rebordo suspeitamente negro, e todas as cortinas se encontravam fechadas. Um coaxar interrompeu a comtemplação. Três pares de olhos fixaram-se na rã que esperava impacientemente.
- Ah, a gorgeta!- lembrou-se Hernâni- Esbéquio...
Um aceno de cabeça na direcção do ancião traduziu-se na aterragem perfeitamente calculada da bengala na diminuta testa da rã, que de imediato abalou a uma velocidade estonteante.
-Entramos?

Os Damaias: Capítulo II- "Renovação"

Adalberto apresentou-se com uma efeminada voz estridente:
- Bonjour, e que belo dia este para decorar espeluncas, não é, meus queridos?- passou a mão masculinamente suave pelo queixo descaído de Esbéquio que parecia não acreditar em tal personagem.- Hernâni, fofo!
Hernâni estendeu relutantemente os braços para Adalberto, abraçando-o distantemente.
-Há quanto tempo...- forçou os seus lábios a abrirem-se. -Desde a tropa, não foi? Tu estavas no 24º batalhão de alfaiataria, certo?
- Exacto! E nunca vi nenhuma divisão tão querida como a tua quando usaram os meus camuflados cor-de-laranja!- soltou uma gargalhada para Becas, que não conteve um esgar- Bem, então foi isto que arranjaste? Não está mau... para um morto.- o seu olhar demorava-se agora nas paredes imundas e no ar pouco seguro do tecto- Pagaste por isto?
Hernâni acedeu envergonhado.
- Bem então vamos trabalhar, sim, queridos? Quero que saiam daqui durante uma semana, está? Quando voltarem eu tenho isto mais fofo do que eu! -piscou um olho a Esbéquio que parecia aliviado por poder sair dali.- Vá, façam as malas, tenho de trabalhar!
Hernâni foi buscar Nikas ao jardim, que rosnou ao ver as calças de cabedal verdes de Adalberto, e uma garrafa que tinha escondido debaixo do sofá da sala. Adalberto estremeceu ao sentir o cheiro emanado pelo sofá quando Hernâni o levantou, estupefacto pela expressão de satisfação no rosto de Becas ao sentir o mesmo odor.
- Estamos prontos.- declarou Hernâni.
- Então saiam. Deixem a arte inundar este lar... -Esbéquio juntou-se ao rosnar de Nikas quando viu ao olhar o rímel na face de Adalberto.
- Então adeusinho, sim? Voltamos numa semana.- Becas bateu a porta, aliviado com a saudável distância do decorador. Esbéquio bateu no neto com a bengala, algo de que Hernâni já estava à espera.
- E agora, para onde vamos?- indagou Becas, ao que um encolher de ombros de Esbéquio desviou o seu olhar espectante para Hernâni.
- Ficamos num hotel. Conheço um aqui perto. Muito chique...

Os Damaias: Capítulo II- "Adalberto"

Nikas ladrava alegremente no novo jardim quando os Damaias acordavam da sua primeira noite passada n’O Canivete. E as suas caras davam a entender que todo o entusiasmo do dia anterior se tinha desvanescido com uma noite de luta contra o desconforto de tentar adormecer em sofás parciais. Falavam disso por entre bocejos enquanto Esbéquio servia o pequeno-almoço na alcatifa da sala, pois a única mesa que haviam encontrado em casa tinha acabado de partir uma das três pernas que lhe restavam. Habituados desde novos a um regime alimentar controlado, Hernâni e Becas serviram-se de uma bolacha integral cada um, das pequenas, não resistindo a deitar um olhar guloso às apetitosas tostas que Esbéquio guardava para si como um luxo do qual não havia usufruído toda a vida.
- Sabem o que esta casa precisava?- ousou Becas por entre uma boca cheia de uma esfomeada dentada na bolacha, que imediatamente desapareceu- Móveis.
- Qual quê?!- contrapôs o avô- Móveis são para mulheres e póneis. Nós não precisamos disso, nem que durmamos no chão!
Esbéquio tinha crescido num Cabo Verde economicamente devastado e insuficiente, sendo sempre habituado a sobreviver apenas com o indispensável: um rolo de papel higiénico e uma garrafa de gin. Com tudo o resto ele sabia lidar, a vida havia-lhe ensinado a não precisar de nada para viver.
- Até nem acho má ideia.- a ousadia do neto chocou o avô, mas Hernâni continuou, esperando que o mastigar abafasse as palavras que sabia não dever dizer- Nestas camas não vamos ter uma noite sossegada de sono. E vou precisar de trazer pessoas cá a casa, para impressionar na marcenaria...- sorriu ao ver que a indignação do velho começava a vacilar.- Conheço um bom decorador aqui da zona, ele pôe a casa num brinquinho num instante, e não leva caro... Que dizes, avô?
- Bem, a casa é tua... Faz o que quiseres, mas no meu quarto não quero muitas dessas mariquices, ouviste?- Ouvindo isto, Becas não resistiu a soltar uma gargalhada e a abraçar o velho, que se debatia por manter uma cara séria.
- Então está combinado, hoje de tarde trago-o por cá. Chama-se Adalberto, é chique...
E tal como prometido, naquela mesma tarde, apresentou-se n’O Canivete um sujeito magro, alto, com metade da face encovada coberta por um véu lilás que lhe caía pelas costas. Os olhos estavam tapados com uns óculos escuros, triangulares. O cabelo pintado de loiro roçava-lhe os ombros, que seguravam um xaile rosa que lhe tapava o tronco.
- Mais maricas...- suspirou Esbéquio.

Os Damaias: Capítulo II- "O Canivete: Reloaded"

E estava Becas ainda perdido em suspiros quando foi acordado por uma bengala que se abateu com violência sobre a sua desnuda cabeça, muito perto de uma marca com que tinha ficado por uma bengalada semelhante enquanto jovem. Esbéquio, o avô de Hernâni, gritou para o despertar, encostando perigosamente a boca ao ouvido do jovem. Este estremeceu com a voz do ancião a retinir-lhe nos tímpanos sujos.
-Que foi?- sobressaltou-se.
-Estamos aqui só de passagem, temos de estar n'O Canivete antes de anoitecer.- relembrou-lhe Esbéquio.
Os Damaias chegaram a’O Canivete e estacaram, fixando boquiabertos o decadente palacinho que tinha sido reservado para a sua morada durante a sua estadia em província lusitana.
- C’um chavasco!- exclamou um surpreendido Becas.
- Isto é muito melhor do que o que vi no desenho da imobiliária!- anuiu Esbéquio.
Hernâni mantinha-se em silêncio, perdido em sonhos pelos canos docemente rachados, pelas poças de água lamacenta que gentilmente se formavam nas redondezas, dos próprios vidros que timidamente revelavam, por entre várias camadas sobrepostas de pó, um verdadeiro oásis de insectos e outros pequenos animais prejudiciais à saúde humana, e não só... Depois, ainda estonteado, conseguiu balbuciar:
- Entramos?
Esbéquio tirou do bolso esburacado uma chave ferrugenta, e após uma guinchante volta na fechadura da porta esfaqueada, entravam no novo lar. E o interior era tão surpreendente como o exterior, e a mesma cara de estupefacção vigorou nas suas caras. Deram por si mesmos a admirar todos os recantos da casa. E que casa era! Com um hall de entrada que se estendia por um admirável metro, despido de fúteis decorações que ameaçavam a simplicidade natural da casa, a primeira impressão da casa foi de imponente respeito. Avançaram pela majestosa habitação que se lhes deparava com brilhos de estupefacção nos maravilhados olhos. A cozinha estava assente nas linhas que traçavam o resto da casa, sendo constituída por um cubículo não muito extenso, aparentemente ocupado por mais equipamento culinário do que aquilo para que foi feita, tendo alvas portas e gavetas de madeira esburacadas por um surto dos mais invulgares insectos e roedores que se podem encontrar em Portugal, ou em qualquer outra parte do Mundo, diga-se de passagem. A panóplia de equipamentos de confecção alimentar incluía uma racha num cano subterrâneo que libertava água dubiamente assinalada como potável, e ainda um conveniente furo numa conduta de gás natural, que tinha o objectivo de proporcionar um mais fácil acender de fogos, o que mereceu um aprovador aceno de um Esbéquio habituado à comida crua de Cabo Verde. A sala, ou aquilo que mais de assemelhava a uma naquela casa, era de dimensões reduzidas, parcamente mobilada com um sofá de dois lugares, raspado da résquia de tinta que teimava em se prender ao estofo, dando-lhe um aspecto gasto, além das misteriosas manchas que se espalhavam pelo tecido, em relação às quais se havia tornado impossível de dizer se eram deliberadas pontadas de moda ou apenas um descuido com um molho picante durante uma jornada do passatempo lusitano. Um resquício intermitente de luminosidade era providenciado por uma amostra de candeeiro estacionado no canto da sala. Os quartos eram parcos em tudo, tendo apenas um colchão estendido no soalho, i várias bonecas insufláveis espalhadas pelo chão. No fim da visita, Esbéquio não resistiu a congratular Hernâni pela bela casa que lhes tinha arranjado.

Os Damaias: Capítulo II- "Chegamos"

E assim se puseram a caminho os Damaias, na alegre companhia do Nikas, que se acercava deles de cada vez que paravam a sua incansável marcha, pousando a doce cabeça no cansado regaço de Hernâni. Este respondia com afáveis carícias, partilhando o pedaço de pão com uma semana que os generosos padeiros regionais lhes vendiam por meia dúzia de vinténs. E foram rumando a Norte, fortalecidos pela esperança de pão apenas com dois ou três dias. No caminho falavam. E de tudo falavam! Do tempo, da paisagem, do tempo, da nova paisagem, do novo tempo, e das bochechas do Nikas. Alguns momentos de silêncio constrangedor eram rapidamente quebrados por gentes locais que, na boa tradição da hospitalidade portuguesa, lhes atiravam calhaus. Mas não os calhaus grandes, como os brutos exemplos que chegavam do norte da Europa. Calhaus moderadamente pequeninos. As crianças, num enternecedor gesto de sensibilidade, atiravam-lhes vegetais velhos, para não magoarem os castiços estranhos! O velho sorria perante tão simpático tratamento. Depois, insultava-os e espancava algumas criancinhas, mas tudo era feito com carinho e dedicação. E foram necessárias duas semanas de boleias, esmolas e calhaus para chegarem à Damaia. Fartos da monótona paisagem do alentejo lusitano, com as suas douradas planícies ondulantes, foi com alegria nos olhos que viram os pedaços de cimento a cair dos primeiros prédios ao fim da tarde. Extasiado, Becas pulou de encanto à visão da urbe. Passearam os meandros da capital, enchendo-se daquele ar poluído e barulhento por que tanto ansiavam. Inspiraram o fumo dos luxuosos veículos que circulavam pela cidade, deliciaram-se com as tasquinhas típicas que os expulsavam do interior, e acharam-se maravilhados pelos monumentos que atraíam multidões, tal como o caixote do lixo no qual os procuradores gerais deitavam os envelopes com os quais tomavam decisões, ou mesmo o beco em que a internacionalmente reconhecida Fás Mumbiko trabalhava todas as noites. Becas, um incurável Don Juan, não parava de tentar a sua sorte com as meninas que passavam, dando uso às frases de engate mais populares de África, mas após alguns fracassos decidiu-se a tentar com os meninos, se bem que não com melhor sorte. Hernâni não desviava os olhos da riqueza arquitectónica da capital, toda a arte envolvida na construção dos postes de iluminação, o uso de tinta nas casas, a quase inexistência de buracos nos telhados das casas, tudo o que de novo a cidade lhes mostrava. E muito mostrava esta nova cidade...

Os Damaias: Capítulo II- "Bochechas"

- Olá, Lisboa!- exclamou um excitado Hernâni Damaia.
- Isto não me cheira a Lisboa...- suspeitou Becas. O seu pensamento foi confirmado pelo avô de Hernâni, que com um desapontado gesto apontou para uma placa que, por entre embalagens de iogurte e outros lacticínios, dizia que estavam no "formoso e limpo" concelho de Sagres. A desilusão nos olhos de Hernâni foi desviada por um ponto negro no mar que se aproximava lenta e vagarosamente. Semicerrando os olhos, conseguiu distinguir um focinho canino por entre o furioso retumbar das impiedosas vagas. Mais à frente, pôde ver o que se assemelhava a um peluche entra as suas mandíbulas de canídeo. Intrigado, esperou até o arfante animal chegar a terra para verificar que o peluche se tratava, de facto, de um pinguim. Um surpreso grunhido foi tudo o que consegiu emitir, agarrando a pequena ave, apenas para perceber que estava morta.
- Deve ter-se afogado.- supôs Becas, que se juntava a Hernâni. Hernâni abanou a cabeça em incredulidade, mas não se lembrava de nenhuma explicação melhor. Ignoravam eles que o cão era chileno, e que tentava atingir a costa africana, onde tinha enterrado um osso numa invernosa tarde de Novembro. No caminho, viu-se distraído pelo pinguim que afundou o barco onde seguiam viagem os cinco familiares dos Damaias, e, agarrando-o, resolveu entregá-lo aqueles que pensava serem os donos. Agora, sacudia-se, tentando secar as bochechas invulgarmente gordas. Os Damaias, movidos pela compaixão africana que os caracterizava, pensaram em comê-lo. Contudo, após segunda consideração, comeram o pinguim, dado que já estava, de certa forma, morto. Resolveram então agradecer ao cãozinho a refeição ficando com ele.
- E que lhe chamamos?- inquiriu Becas. A resposta veio na forma de um som gutural, no qual se ouvia "Bochechas". O avô aprovou a ideia, dizendo que fazia sentido, visto o desenvolvimento facial do cão. No entanto, Hernâni contrapôs sugerindo que lhe chamassem "Nikas", que achava mais adequado. E assim ficou. De seguida, começaram a pensar em seguir viagem para a Damaia, onde ocupariam o "Canivete". Tal seria difícil, devido à falta de recursos monetários e de cabelo. Mas encontrariam uma saída, como sempre fazem os Damaias.

Os Damaias: Capítulo I- "A Viagem"

E foi com grande pompa e circunstância que os Damaias chegaram à decadente capital da réstia do outrora impetuoso império lusitano. Arrastados por uma enorme vaga, o seu aterro numa qualquer praia desconhecida da costa lisboeta foi a porção mais confortável da sua penosa viagem. E que viagem foi essa! Os celebrados navegadores d’Os Lusíadas empalideceriam em comparação com os actos de bravura, coragem e a mais pura e simples estupidez do tortuoso caminho que os trouxera ao lar dos antigos reis dos mares. Tal viagem havia começado nas solarengas costas de Cabo Verde, onde um imberbe e excitado Hernâni Damaia fez anunciar a seu avô que recebera uma bolsa de estudo para tomar uma carreira no respeitável ofício de marceneiro em Portugal. O ancião, após cofiar as longas barbas envelhecidas pela vida e pelos cozinhados da falecida mulher, demonstrando o amor que tinha ao neto, não só apoiou a sua viagem, como fez questão de o fazer acompanhar por todos os membros do reduto familiar. Assim, e sem mais demoras, partiram os vinte em direcção a Portugal com um objectivo comum em mente: viver à custa de Hernâni. Sem se preocuparem com as efeminadas precauções habituais de qualquer viajante antes de uma peregrinação, tais como alimentos, transporte, vestuário ou mesmo a indispensável garrafa de conhaque, mergulharam no mar de incertezas que se lhes deparava e, a nado, rumaram ao seu admirável destino. Tentaram manter-se juntos, mas as correntes e o desejo de satisfazer necessidades corporais não apoiaram este plano. Então, involuntariamente fragmentados, cada um tentou a sua sorte nessa longínqua hipótese de atingir a costa portuguesa. Hernâni e o avô permaneceram juntos durante toda a viagem, ainda que muito distantes dos outros Damaias. Esses foram-se perdendo pelo caminho: dois tomaram uma curva errada, atingindo Marrocos, onde foram escravizados; outros três foram atacados por tubarões de uma espécie raríssima que estavam em rota migratória para o Árctico; mais dois perderam a vida devido a confrontos com animais selvagens, desta feita cavalos-do-mar; cinco que tiveram a fortuna de embarcar num navio que se dirigia a Faro viram o seu transporte afundar após um choque com um pinguim canadiano, afogando-se presos num dos camarins; outros cinco foram ignorados pelo mesmo navio e capturados por um submarino amarelo russo, no qual não sobreviveram ao um embate de um projéctil de origem desconhecida. Assim, chegaram a Portugal Hernâni, o seu avô e um primo muito próximo de Hernâni, Becas Damaia. E foram estas três almas que fizeram trouxeram o espírito Damaia para a pátria nossa...

Os Damaias: Capítulo I- "O Canivete"

A casa (perdão, barraca) para a qual os Damaias se mudaram chamava-se "O Canivete". Recebera este nome como resultado de uma fatídica noite do Inverno de 1968, na qual um antigo dono d'O Canivete, Anacleto Lancheira, fora perseguido por um empenhado agente da autoridade, à conta de uma tentativa de assalto infortuita, até chegar às imediações do seu tão prezado bairro. Aí, despistando o bófia, como a parede de um prédio vizinho dizia na forma de uma caleidoscópica inspiração de um pintor de rua, teve de enfrentar um reles gatuno, que lhe pedia furiosamente mais pela carteira do que pela vida. Num acesso de loucura, Anacleto levou a mão ao punhal que o seu blusão ineficazmente tentava esconder, e arremessou-o ao desafortunado vira-casacas. Já com umas gotas a toldar-lhe a visão, Anacleto falhou o alvo e o punhal cravou-se violentamente na porta de madeira d'O Canivete. Nunca ninguem conseguiu remover esse punhal da amaldiçoada porta. Quanto a Anacleto, o vagabundo espancou-o após o lançamento da arma e esvaiu-se em sangue à porta da sua estimada casa.
Quando os Damaias se para lá mudaram, muita coisa havia mudado n'O Canivete. As placas de zinco que reluzentemente serviam de tecto às paredes de tijolo nu tinham sido escurecidas pelo tempo e pelos assados dos desapropriados vizinhos. No jardim que ocupava a traseira do estabelecimento habitacional, amostras de cadeiras faziam nascer a cobiça nos olhos esfomeados das gentes que por lá passavam. Gatos das despreocupadas imediaçoes enlameavam-se languidamente na imunda relva que se transformava num refinado lamaçal quando o Sol da aconchegante Primavera começava a secar o húmido resultado da precipitação invernosa. Um furo na canalizaçao externa providenciava os pássaros das redondezas com um chique repuxo para lavarem as indecentes penas. Quando se soube que O Canivete ia voltar a ser habitado, rumores correram o bairro. "Ouvi dizer que são gente de bem, muito fina!", bisbilhotava a mercearia, ao que a clientela do talho respondia "Não, parece que são africanos".
E assim se fez anunciar a chegada dos Damaias...