quarta-feira, 2 de janeiro de 2008

Os Damaias: Capítulo I- "O Canivete"

A casa (perdão, barraca) para a qual os Damaias se mudaram chamava-se "O Canivete". Recebera este nome como resultado de uma fatídica noite do Inverno de 1968, na qual um antigo dono d'O Canivete, Anacleto Lancheira, fora perseguido por um empenhado agente da autoridade, à conta de uma tentativa de assalto infortuita, até chegar às imediações do seu tão prezado bairro. Aí, despistando o bófia, como a parede de um prédio vizinho dizia na forma de uma caleidoscópica inspiração de um pintor de rua, teve de enfrentar um reles gatuno, que lhe pedia furiosamente mais pela carteira do que pela vida. Num acesso de loucura, Anacleto levou a mão ao punhal que o seu blusão ineficazmente tentava esconder, e arremessou-o ao desafortunado vira-casacas. Já com umas gotas a toldar-lhe a visão, Anacleto falhou o alvo e o punhal cravou-se violentamente na porta de madeira d'O Canivete. Nunca ninguem conseguiu remover esse punhal da amaldiçoada porta. Quanto a Anacleto, o vagabundo espancou-o após o lançamento da arma e esvaiu-se em sangue à porta da sua estimada casa.
Quando os Damaias se para lá mudaram, muita coisa havia mudado n'O Canivete. As placas de zinco que reluzentemente serviam de tecto às paredes de tijolo nu tinham sido escurecidas pelo tempo e pelos assados dos desapropriados vizinhos. No jardim que ocupava a traseira do estabelecimento habitacional, amostras de cadeiras faziam nascer a cobiça nos olhos esfomeados das gentes que por lá passavam. Gatos das despreocupadas imediaçoes enlameavam-se languidamente na imunda relva que se transformava num refinado lamaçal quando o Sol da aconchegante Primavera começava a secar o húmido resultado da precipitação invernosa. Um furo na canalizaçao externa providenciava os pássaros das redondezas com um chique repuxo para lavarem as indecentes penas. Quando se soube que O Canivete ia voltar a ser habitado, rumores correram o bairro. "Ouvi dizer que são gente de bem, muito fina!", bisbilhotava a mercearia, ao que a clientela do talho respondia "Não, parece que são africanos".
E assim se fez anunciar a chegada dos Damaias...

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