quarta-feira, 2 de janeiro de 2008

Os Damaias: Capítulo II- "O Canivete: Reloaded"

E estava Becas ainda perdido em suspiros quando foi acordado por uma bengala que se abateu com violência sobre a sua desnuda cabeça, muito perto de uma marca com que tinha ficado por uma bengalada semelhante enquanto jovem. Esbéquio, o avô de Hernâni, gritou para o despertar, encostando perigosamente a boca ao ouvido do jovem. Este estremeceu com a voz do ancião a retinir-lhe nos tímpanos sujos.
-Que foi?- sobressaltou-se.
-Estamos aqui só de passagem, temos de estar n'O Canivete antes de anoitecer.- relembrou-lhe Esbéquio.
Os Damaias chegaram a’O Canivete e estacaram, fixando boquiabertos o decadente palacinho que tinha sido reservado para a sua morada durante a sua estadia em província lusitana.
- C’um chavasco!- exclamou um surpreendido Becas.
- Isto é muito melhor do que o que vi no desenho da imobiliária!- anuiu Esbéquio.
Hernâni mantinha-se em silêncio, perdido em sonhos pelos canos docemente rachados, pelas poças de água lamacenta que gentilmente se formavam nas redondezas, dos próprios vidros que timidamente revelavam, por entre várias camadas sobrepostas de pó, um verdadeiro oásis de insectos e outros pequenos animais prejudiciais à saúde humana, e não só... Depois, ainda estonteado, conseguiu balbuciar:
- Entramos?
Esbéquio tirou do bolso esburacado uma chave ferrugenta, e após uma guinchante volta na fechadura da porta esfaqueada, entravam no novo lar. E o interior era tão surpreendente como o exterior, e a mesma cara de estupefacção vigorou nas suas caras. Deram por si mesmos a admirar todos os recantos da casa. E que casa era! Com um hall de entrada que se estendia por um admirável metro, despido de fúteis decorações que ameaçavam a simplicidade natural da casa, a primeira impressão da casa foi de imponente respeito. Avançaram pela majestosa habitação que se lhes deparava com brilhos de estupefacção nos maravilhados olhos. A cozinha estava assente nas linhas que traçavam o resto da casa, sendo constituída por um cubículo não muito extenso, aparentemente ocupado por mais equipamento culinário do que aquilo para que foi feita, tendo alvas portas e gavetas de madeira esburacadas por um surto dos mais invulgares insectos e roedores que se podem encontrar em Portugal, ou em qualquer outra parte do Mundo, diga-se de passagem. A panóplia de equipamentos de confecção alimentar incluía uma racha num cano subterrâneo que libertava água dubiamente assinalada como potável, e ainda um conveniente furo numa conduta de gás natural, que tinha o objectivo de proporcionar um mais fácil acender de fogos, o que mereceu um aprovador aceno de um Esbéquio habituado à comida crua de Cabo Verde. A sala, ou aquilo que mais de assemelhava a uma naquela casa, era de dimensões reduzidas, parcamente mobilada com um sofá de dois lugares, raspado da résquia de tinta que teimava em se prender ao estofo, dando-lhe um aspecto gasto, além das misteriosas manchas que se espalhavam pelo tecido, em relação às quais se havia tornado impossível de dizer se eram deliberadas pontadas de moda ou apenas um descuido com um molho picante durante uma jornada do passatempo lusitano. Um resquício intermitente de luminosidade era providenciado por uma amostra de candeeiro estacionado no canto da sala. Os quartos eram parcos em tudo, tendo apenas um colchão estendido no soalho, i várias bonecas insufláveis espalhadas pelo chão. No fim da visita, Esbéquio não resistiu a congratular Hernâni pela bela casa que lhes tinha arranjado.

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