quarta-feira, 2 de janeiro de 2008

Os Damaias: Capítulo III- O Quarto

Esbéquio foi o primeiro a entrar no quarto, visto ter idade a mais para carregar malas, delegando a custosa tarefa no neto que o seguia. A porta impunha tanto respeito quanto uma porta de cartolina pode impor. E que porta era! Um sujeito enfiado num enfezado uniforme de porteiro, que consistia muito simplesmente num pedaço de papel em que se lia «Porteiro» que fita-cola havia prendido á lapela da camisa amarela apresentou-se como um duvidoso Vice-Director Geral de Assistência a Hóspedes, justificando a não-inclusão do título completo no papel de identificação como poupanças internas.
- Asseguro vossas excelências de que esta porta é fenomenal! É uma bomba! Só tem é de ser mudada duas vezes por dia, mas é um mimo! - exaltava assim a entrada do quarto. - Isto é cartolina de fazer barcos! - apregoava face à desconfiança de Esbéquio, que se direccionava mais ao vigário do que à missa.
- Há alguma razão para ser feita de cartolina? - inquiriu Hernâni.
- Regras governamentais, instituição do uso de materiais recicláveis. - era notório que a explicação havia sido memorizada e que não cabia a um subintendente compreender a mecânica da reciclagem. - Instalamos uma de manhã, quando os hóspedes saem, e outra quando entram à noite. Mas isto tem placa dupla, atenção! - pareceu continuar a fervorosa defesa da utilidade da porta de cartolina, mas Esbéquio já tinha ignorado o lacaio, abrindo agora a porta com a bengala, que batia vigorosamente contra a resistente barreira.
- Às vezes empena, é preciso fazer mais força... - explicava o homem, perante as faces risonhas de Becas e Hernâni enquanto oleava os cantos antes de se atirar pela porta, rebolando para dentro do quarto. - Todo vosso. - acrescentou o seu sorriso.
Esbéquio entrou devagar, rosnando por ter de se baixar para caber no buraco que o impacto havia imprimido na placa. Ficou agradado por o quarto ser bastante luxuoso em relação ao que esperava. Duas camas enfeitavam a metade esquerda do quarto, com dois colchões que ondulavam, cobertos por lençóis de látex.
- Colchões de água?
- Vinho branco. Excedemos o limite estipulado por lei, então tínhamos de os esconder.
- Festarola! - gritou Becas, saltando nos colchões. Ainda não tinha saltado duas vezes já uma certeira bengalada se abatia sobre a sua indefesa cabeça.
O resto do quarto era simples, bem ao estilo Lisboeta: tinha uma janela, em que tinham colado um cartaz com uma paisagem parisiense, mas com que Hernâni se deliciava, e um armário pequeno, com duas gavetas, de madeira menos carunchosa do que o resto do hotel. Havia também uma bola de espelhos no tecto, ou o que tal seria, não tivessem sido removidos os espelhos para que juntos fossem colados e pendurados por cima do armário, providenciando um reflexo dividido. A bola, no entanto, tinha sido entretanto revestida com uma minuciosa rede de velas, um efeito inovador na Damaia.
O porteiro retirou-se então, acrescentando à saída:
- A casa de banho colectiva é ao fundo do corredor, batam três vezes antes de entrarem, por favor.

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