Dito e feito.
No dia seguinte, Hernâni parava na recepção, encarando Farfas com a firmeza das suas costas, passando o dinheiro, previamente surripiado com discrição da caixa registadora do hotel, sobre o balcão, para a reconhecida mão da recepcionista.
- Obrigado. Voltem sempre. - um esgar atravessou a face de Hernâni, que não conteve uma pequena risada.
Saíram, carregados com a roupa que tinham vestida, e voltaram a passear-se pela cidade que não os havia recebido. Esgueiravam-se dos senhores de uniforme que passeavam o pau que traziam à cintura, enveredando por caminhos inexistentes que os levavam a todo o lado, deambulando até por fim chegarem ao Canivete. E como tinha mudado.
Na verdade, não tinha mudado muito. A pedido da população local, o canivete espetado na porta não foi movido. No entanto, a casa, agora pintada de amarelo, emanava um outro ar, uma novidade na Damaia cor de cimento.
- Eh lá, isto está bonito, sim senhor... - Becas passeava boquiaberto pela casa, observando a remodelação. As janelas tinham um caixilho rosa, muito polido, ainda que o vidro continuasse partido. A canalização exterior da habitação fora revestida com uma camada de papel celofane azul bebé, brilhando agora com a pouca luz solar que se dignava a entrar na Damaia.
O quintal também estava transformado. As cadeiras haviam sido limpas, e possuíam agora uma imponente presença nas traseiras da casa, suplantando o facto de não possuírem assento e de terem duas pernas.
- São artísticas. - afirmava Adalberto, que saía da casa para cumprimentar o casal. Envolto numa toalha de banho púrpura, não tardou a aparecer também um jovem franzino, de corpo oleado, à porta de casa. - Este é Monsieur Touma Tesrosa , um sócio meu. É francês, ajudou na remodelação da casa. É engenheiro civil. - acrescentou.
A bengala de Esbéquio já descia sobre a cabeça dos decoradores quando terminou a frase. E voltaria a descer quando visse o interior da casa.
domingo, 30 de março de 2008
domingo, 16 de março de 2008
Os Damaias: Capítulo III - Lobifarfas
- C'um chavasco!
A porta fechou-se com um estrondo. Hernâni estava lívido, encostado nela. Na verdade, era de facto ele quem segurava a porta.
Ainda sustendo a respiração, conseguiu balbuciar para o interior:
- Como arranjou tanto pêlo? - a voz tremia-lhe de estupefacção.
A resposta não veio sem demora.
- Pus a bruxa nas traseiras.
Hernâni pareceu aliviado, por alguma razão, e esboçou compreensão na face mais branca que já tivera.
- Ela queria abrir um balcão de bruxaria na recepção do meu Hotel, por isso, no interesse de manter a qualidade do estabelecimento, recoloquei-a nas traseiras. Uma semana depois estava com queda de cabelo pelo corpo todo. Agora tenho que fazer depilação completa todos os dias, para manter a boa apresentação para o hotel.
Hernâni deixou escapar uma risada, mas não teve coragem de comentar.
- Mas já acabei, podes vir fazer o que querias.
A lividez voltou a encher a face do Cabo-Verdiano.
- Não é preciso, eu já perdi a vontade... - deu a embaraçosa desculpa enquanto sacudia a poça esverdeada que se estendia no chão perto do seu pé direito.
A porta abriu-se, atingindo Hernâni com a visão da recepcionista mal envolta numa toalha de banho, deixando entrever o pêlo que já começava a surgir nas pernas e braços, para espanto de Hernâni. No entanto, mantendo a pose digna de uma madame, Farfas passou por ele de cabeça erguida, exibindo mais uma vez o buço, de que se tinha esquecido, e piscou-lhe o olho, seguindo-se um sorriso de conotação marota, enquanto subia as escadas para os seus aposentos. Perdido entre a estupefacção e a vontade insuportável de se rir, voltou-se, não deixando de reparar no mar de pêlo que se havia espalhado pela casa de banho, correndo para o quarto, onde Esbéquio e Becas estavam à sua espera.
- Vamos sair daqui.
A porta fechou-se com um estrondo. Hernâni estava lívido, encostado nela. Na verdade, era de facto ele quem segurava a porta.
Ainda sustendo a respiração, conseguiu balbuciar para o interior:
- Como arranjou tanto pêlo? - a voz tremia-lhe de estupefacção.
A resposta não veio sem demora.
- Pus a bruxa nas traseiras.
Hernâni pareceu aliviado, por alguma razão, e esboçou compreensão na face mais branca que já tivera.
- Ela queria abrir um balcão de bruxaria na recepção do meu Hotel, por isso, no interesse de manter a qualidade do estabelecimento, recoloquei-a nas traseiras. Uma semana depois estava com queda de cabelo pelo corpo todo. Agora tenho que fazer depilação completa todos os dias, para manter a boa apresentação para o hotel.
Hernâni deixou escapar uma risada, mas não teve coragem de comentar.
- Mas já acabei, podes vir fazer o que querias.
A lividez voltou a encher a face do Cabo-Verdiano.
- Não é preciso, eu já perdi a vontade... - deu a embaraçosa desculpa enquanto sacudia a poça esverdeada que se estendia no chão perto do seu pé direito.
A porta abriu-se, atingindo Hernâni com a visão da recepcionista mal envolta numa toalha de banho, deixando entrever o pêlo que já começava a surgir nas pernas e braços, para espanto de Hernâni. No entanto, mantendo a pose digna de uma madame, Farfas passou por ele de cabeça erguida, exibindo mais uma vez o buço, de que se tinha esquecido, e piscou-lhe o olho, seguindo-se um sorriso de conotação marota, enquanto subia as escadas para os seus aposentos. Perdido entre a estupefacção e a vontade insuportável de se rir, voltou-se, não deixando de reparar no mar de pêlo que se havia espalhado pela casa de banho, correndo para o quarto, onde Esbéquio e Becas estavam à sua espera.
- Vamos sair daqui.
segunda-feira, 7 de janeiro de 2008
Os Damaias: Capítulo III- A estadia
O tempo passava n'A Colina da Chuva, quase tanto como passava noutro sítio qualquer. Não tanto, porque os relógios estavam avariados, mas ainda assim, passava. E como alguém tinha de fazer alguma coisa com ele, foi-se gastando no hotel, na Damaia, e um pouco por toda a metrópole, até que havia tempo gasto espalhado por toda a parte. Foi gasto em acordar mais cedo que os galos, para criar a sensação de jet-lag, posteriormente usada na deambulação que teimava percorrer a cidade. E quanto percorreram naquela semana!
Enveredaram por caminhos que não conheciam Lisboa, e que Lisboa não conhecia, perdendo-se repetidamente apenas para se encontrarem num sítio onde não estavam. Pairavam em cafés, quase se sentiam clientes até terem de pagar, o que raramente acontecia. Ainda assim, circulavam, ouvindo conversas, por vezes participando nas mesmas, com heterónimos, como Duque da Panólia, ou Esbéquio, que ninguém tomava como nome verdadeiro. Visitaram o metropolitano, sendo esse o seu principal meio de deslocamento pela cidade. E não era fácil caminhar pelos carris.
E toda a exploração que faziam durante o dia terminava nos quartos luxuosos d'A Colina da Chuva. Mas a rotina foi rompida, quando Hernâni explorou mais do que queria ao entrar na casa de banho sem bater três vezes à porta primeiro...
Mistério...
Enveredaram por caminhos que não conheciam Lisboa, e que Lisboa não conhecia, perdendo-se repetidamente apenas para se encontrarem num sítio onde não estavam. Pairavam em cafés, quase se sentiam clientes até terem de pagar, o que raramente acontecia. Ainda assim, circulavam, ouvindo conversas, por vezes participando nas mesmas, com heterónimos, como Duque da Panólia, ou Esbéquio, que ninguém tomava como nome verdadeiro. Visitaram o metropolitano, sendo esse o seu principal meio de deslocamento pela cidade. E não era fácil caminhar pelos carris.
E toda a exploração que faziam durante o dia terminava nos quartos luxuosos d'A Colina da Chuva. Mas a rotina foi rompida, quando Hernâni explorou mais do que queria ao entrar na casa de banho sem bater três vezes à porta primeiro...
Mistério...
quarta-feira, 2 de janeiro de 2008
Os Damaias: Capítulo III- O Quarto
Esbéquio foi o primeiro a entrar no quarto, visto ter idade a mais para carregar malas, delegando a custosa tarefa no neto que o seguia. A porta impunha tanto respeito quanto uma porta de cartolina pode impor. E que porta era! Um sujeito enfiado num enfezado uniforme de porteiro, que consistia muito simplesmente num pedaço de papel em que se lia «Porteiro» que fita-cola havia prendido á lapela da camisa amarela apresentou-se como um duvidoso Vice-Director Geral de Assistência a Hóspedes, justificando a não-inclusão do título completo no papel de identificação como poupanças internas.
- Asseguro vossas excelências de que esta porta é fenomenal! É uma bomba! Só tem é de ser mudada duas vezes por dia, mas é um mimo! - exaltava assim a entrada do quarto. - Isto é cartolina de fazer barcos! - apregoava face à desconfiança de Esbéquio, que se direccionava mais ao vigário do que à missa.
- Há alguma razão para ser feita de cartolina? - inquiriu Hernâni.
- Regras governamentais, instituição do uso de materiais recicláveis. - era notório que a explicação havia sido memorizada e que não cabia a um subintendente compreender a mecânica da reciclagem. - Instalamos uma de manhã, quando os hóspedes saem, e outra quando entram à noite. Mas isto tem placa dupla, atenção! - pareceu continuar a fervorosa defesa da utilidade da porta de cartolina, mas Esbéquio já tinha ignorado o lacaio, abrindo agora a porta com a bengala, que batia vigorosamente contra a resistente barreira.
- Às vezes empena, é preciso fazer mais força... - explicava o homem, perante as faces risonhas de Becas e Hernâni enquanto oleava os cantos antes de se atirar pela porta, rebolando para dentro do quarto. - Todo vosso. - acrescentou o seu sorriso.
Esbéquio entrou devagar, rosnando por ter de se baixar para caber no buraco que o impacto havia imprimido na placa. Ficou agradado por o quarto ser bastante luxuoso em relação ao que esperava. Duas camas enfeitavam a metade esquerda do quarto, com dois colchões que ondulavam, cobertos por lençóis de látex.
- Colchões de água?
- Vinho branco. Excedemos o limite estipulado por lei, então tínhamos de os esconder.
- Festarola! - gritou Becas, saltando nos colchões. Ainda não tinha saltado duas vezes já uma certeira bengalada se abatia sobre a sua indefesa cabeça.
O resto do quarto era simples, bem ao estilo Lisboeta: tinha uma janela, em que tinham colado um cartaz com uma paisagem parisiense, mas com que Hernâni se deliciava, e um armário pequeno, com duas gavetas, de madeira menos carunchosa do que o resto do hotel. Havia também uma bola de espelhos no tecto, ou o que tal seria, não tivessem sido removidos os espelhos para que juntos fossem colados e pendurados por cima do armário, providenciando um reflexo dividido. A bola, no entanto, tinha sido entretanto revestida com uma minuciosa rede de velas, um efeito inovador na Damaia.
O porteiro retirou-se então, acrescentando à saída:
- A casa de banho colectiva é ao fundo do corredor, batam três vezes antes de entrarem, por favor.
- Asseguro vossas excelências de que esta porta é fenomenal! É uma bomba! Só tem é de ser mudada duas vezes por dia, mas é um mimo! - exaltava assim a entrada do quarto. - Isto é cartolina de fazer barcos! - apregoava face à desconfiança de Esbéquio, que se direccionava mais ao vigário do que à missa.
- Há alguma razão para ser feita de cartolina? - inquiriu Hernâni.
- Regras governamentais, instituição do uso de materiais recicláveis. - era notório que a explicação havia sido memorizada e que não cabia a um subintendente compreender a mecânica da reciclagem. - Instalamos uma de manhã, quando os hóspedes saem, e outra quando entram à noite. Mas isto tem placa dupla, atenção! - pareceu continuar a fervorosa defesa da utilidade da porta de cartolina, mas Esbéquio já tinha ignorado o lacaio, abrindo agora a porta com a bengala, que batia vigorosamente contra a resistente barreira.
- Às vezes empena, é preciso fazer mais força... - explicava o homem, perante as faces risonhas de Becas e Hernâni enquanto oleava os cantos antes de se atirar pela porta, rebolando para dentro do quarto. - Todo vosso. - acrescentou o seu sorriso.
Esbéquio entrou devagar, rosnando por ter de se baixar para caber no buraco que o impacto havia imprimido na placa. Ficou agradado por o quarto ser bastante luxuoso em relação ao que esperava. Duas camas enfeitavam a metade esquerda do quarto, com dois colchões que ondulavam, cobertos por lençóis de látex.
- Colchões de água?
- Vinho branco. Excedemos o limite estipulado por lei, então tínhamos de os esconder.
- Festarola! - gritou Becas, saltando nos colchões. Ainda não tinha saltado duas vezes já uma certeira bengalada se abatia sobre a sua indefesa cabeça.
O resto do quarto era simples, bem ao estilo Lisboeta: tinha uma janela, em que tinham colado um cartaz com uma paisagem parisiense, mas com que Hernâni se deliciava, e um armário pequeno, com duas gavetas, de madeira menos carunchosa do que o resto do hotel. Havia também uma bola de espelhos no tecto, ou o que tal seria, não tivessem sido removidos os espelhos para que juntos fossem colados e pendurados por cima do armário, providenciando um reflexo dividido. A bola, no entanto, tinha sido entretanto revestida com uma minuciosa rede de velas, um efeito inovador na Damaia.
O porteiro retirou-se então, acrescentando à saída:
- A casa de banho colectiva é ao fundo do corredor, batam três vezes antes de entrarem, por favor.
Os Damaias: Capítulo III- A ameaça farfasma
Hernâni foi novamente o primeiro a entrar, em grande parte porque estava melhor preparado para e recepcção que encontrariam. Maravlhados todos pela magnificiência das tábuas que quase encaixavam no tecto, mal se deram conta do seco ganido que fez vibrar o disfarce de abre-latas quando a recepcionista se dirigiu ao grupo:
- Que desejam?
Becas abriu a surpresa boca, engolindo em seco, hábito que tinha adquirido com as refeições que Esbéquio preparava. Esse, por seu lado, abriu os olhos em sinal de respeito, pois havia ouvido falar que tal divindade existia num templo no gana, e ficou deveras impressionado por Portugal possuir um exemplar em tamanho real de sua enormosidade.
- Um quarto para 4. - Hernâni foi corajoso.
- Temos quartos para 1, 2, número de Neper, 3 e pi pessoas, mas não para quatro.- a resposta veio sem nenhuma sombra de explicação. Os cabo-verdianos assumiram que se tratava da designação lusa para anões e outros esquilos. - Como têm um abre-latas recomendo que requisitem dois quartos para 2 pessoas.
O grupo anuiu, desviando-se quando a paquidérmica recepcionista se voltou para procurar as chaves. Podiam jurar que o balcão se tinha inclinado com a passagem do ar. Enfim, entregou a Hernâni as chaves dos quartos 2,89 e 3,wtf.
- Mandámos ampliar o hotel e acabámos com os números para os quartos, então começámos a usar letras, como esse é o primeiro quarto da nova área ficou com as primeiras letras do alfabeto.
O grupo pareceu agradado por aquele hotel aceitar o mesmo alfabeto que Cabo-Verde.
- Muito bem. - Esbéquio notou o ar enjoado do neto e percebeu que era a sua vez de avançar. - Nós vamos então andando para os quartos.
A recepcionista concordou relutantemente, nunca demonstrando a qualquer instante nenhuma réstia de emoção além da desconfiança face ao ar movediço do abre-latas, que rosnou quando passaram pelo buraco no corredor.
Subiram a passos cuidadosos as escadas, que rangiam com o ranger da madeira que tinha sido submetida em pouco tempo a mais peso do que se esperaria numa vida. Becas acabou por partir uma das tábuas, enterrando o pé no buraco que surgiu.
- Não tem mal, temos lareira... - descansou a recepcionista.
Não chegaram a saber se a afarfalhada proposta se destinava à madeira ou a Becas...
- Que desejam?
Becas abriu a surpresa boca, engolindo em seco, hábito que tinha adquirido com as refeições que Esbéquio preparava. Esse, por seu lado, abriu os olhos em sinal de respeito, pois havia ouvido falar que tal divindade existia num templo no gana, e ficou deveras impressionado por Portugal possuir um exemplar em tamanho real de sua enormosidade.
- Um quarto para 4. - Hernâni foi corajoso.
- Temos quartos para 1, 2, número de Neper, 3 e pi pessoas, mas não para quatro.- a resposta veio sem nenhuma sombra de explicação. Os cabo-verdianos assumiram que se tratava da designação lusa para anões e outros esquilos. - Como têm um abre-latas recomendo que requisitem dois quartos para 2 pessoas.
O grupo anuiu, desviando-se quando a paquidérmica recepcionista se voltou para procurar as chaves. Podiam jurar que o balcão se tinha inclinado com a passagem do ar. Enfim, entregou a Hernâni as chaves dos quartos 2,89 e 3,wtf.
- Mandámos ampliar o hotel e acabámos com os números para os quartos, então começámos a usar letras, como esse é o primeiro quarto da nova área ficou com as primeiras letras do alfabeto.
O grupo pareceu agradado por aquele hotel aceitar o mesmo alfabeto que Cabo-Verde.
- Muito bem. - Esbéquio notou o ar enjoado do neto e percebeu que era a sua vez de avançar. - Nós vamos então andando para os quartos.
A recepcionista concordou relutantemente, nunca demonstrando a qualquer instante nenhuma réstia de emoção além da desconfiança face ao ar movediço do abre-latas, que rosnou quando passaram pelo buraco no corredor.
Subiram a passos cuidadosos as escadas, que rangiam com o ranger da madeira que tinha sido submetida em pouco tempo a mais peso do que se esperaria numa vida. Becas acabou por partir uma das tábuas, enterrando o pé no buraco que surgiu.
- Não tem mal, temos lareira... - descansou a recepcionista.
Não chegaram a saber se a afarfalhada proposta se destinava à madeira ou a Becas...
Os Damaias: Capítulo III- O homem-cogumelo
E assim, despedindo-se uns menos cordialmente que todos, saíram do beco onde se acharam, perdida a luz do dia no meio da transformação de poliéster, encontrado o beco como o tinham deixado. Novos caixotes circulavam, as mesmas empregadas recebiam pagamento pelo comprado trabalho dos periquitos, picheleiros pelo trabalho que prometerão deixar pronto. Mas não tinha o mesmo brilho, nem a mesma cor que tinha quando o viram pela primeira vez, e quando Becas se voltou para trás no fundo do beco já não via a espelunca de feitiçaria que tinham visitado, sendo acossado de um medo que não sentia desde o dia em que Esbéquio começou a treinar nele as bengaladas que caracterizariam a sua relação. Foi, aliás, numa dessas sessões de treino que Esbéquio tinha dotado Becas de um dos seus traços mais reconhecíveis: o nariz. Uma estranha combinação de falta de prática na arte da bengalada e da vesguice que acompanhava a idade haviam resultado num invulgar golpe na cana do nariz, que permaneceria por muito tempo irreparavelmente molestado, exibindo um pomposo alto no meio da nasalidade.
Não estranhou as artes de feitiçaria que fariam desaparecer a barraca, e girou o cabelo fabulosamente cortado pelos ombros, um duvidoso cogumelo que carregava como prenda de chegada a solo luso de uma local barbearia. Apanhou rapidamente o grupo que já ia avançado, que não andava depressa devido à dificuldade que Nikas apresentava na locomoção com o desajeitado fato, que lhe dava mais altura do que as mulheres que passavam usavam no andar. E assim voltaram a entrar no hotel, confiantes de passar lá a noite. Um ganido sufocado por poliéster fez-se ouvir quando a recepcionista se apresentou ao balcão...
Não estranhou as artes de feitiçaria que fariam desaparecer a barraca, e girou o cabelo fabulosamente cortado pelos ombros, um duvidoso cogumelo que carregava como prenda de chegada a solo luso de uma local barbearia. Apanhou rapidamente o grupo que já ia avançado, que não andava depressa devido à dificuldade que Nikas apresentava na locomoção com o desajeitado fato, que lhe dava mais altura do que as mulheres que passavam usavam no andar. E assim voltaram a entrar no hotel, confiantes de passar lá a noite. Um ganido sufocado por poliéster fez-se ouvir quando a recepcionista se apresentou ao balcão...
Os Damaias: Capítulo III- Origins
Entraram. Excepto Becas, que ficou a tentar atravessar a estrada. Era um espaço na sua maioria pequeno, pesadamente mobilado: uma mesa de pedra e duas cadeiras de ferrugem. Havia um candeeiro de lava no tecto, e algumas moscas carbonizadas no chão. As paredes eram de madeira coberta com um papel de parede pastoso e de origem duvidosa.
- Gostam das minhas paredes pastel?- era notória a ironia na voz.
Dirigiu-se a uma das cadeiras, deitando um olhar a uma peculiar pintura na parede.
- Não tem nada, mas gosto da moldura. - por esta altura já todos encaravam a bruxa com um sorriso.
Sentou-se.
- Podem sentar-se, desde que não seja na cadeira. Está amaldiçoada. - riu para si, mas a verdade é que ninguém arriscou.
A mesa estava coberta com uma manta do que em tempos havia sido flanela, quadriculada no contraste entre vermelho e preto.
- Era a camisa de um dos clientes. Sentou-se na cadeira...
No centro da mesa havia uma bola de esferovite com estranhas manchas de diversas cores.
- Os mortos não têm preferência por material. - apontando para o cinzeiro à beira da bola, acrescentou - Já estão mortos, não lhes faz mal.
O grupo estava surpreendido com o que se escondia na barraca, mas sentou-se, procurando um espaço seco no chão húmido. A bruxa também se sentou, e principiou o ritual de comtemplação da bola de esferovite. Esfregava as mãos na esfera, produzindo o barulho que dilacerava os tímpanos dos presentes. Havia fechado os olhos, tremendo agora as pálpebras enquanto acariciava as manchas. Por fim, levantou-se, dirigindo-se a Nikas.
- Ora deixa cá ver...- murmurou enquanto a inspeccionava. - Já sei do que precisam.
Voltou-se para um baú inteligentemente escondido por detrás de uma secção pendente de papel de parede, do qual retirou uma enorme tecido vermelho. Deitou-o por cima de Nikas e, muito calmamente e com a plenitude de uma missão completada afirmou:
- Isto é um disfarce de abre-latas. Não faço transformações ao fim-de-semana.
- Hoje é Segunda-Feira. - notou Hernâni.
- Eu é que decido quando a semana deixa de acabar! - o chão humedeceu mais um pouco.
- A propósito, ela não é um cão, é uma cadela. Deve-se ter perdido da dona.
- Viu isso na vossa grande bola da sabedoria, ó ancestral anciã? - Hernâni estava prostrado ao proferir as palavras.
- Não, vi na coleira dela. - havia na sua expressão um impagável gozo em provocar os cabo-verdianos. - São 30 aérios pelo fato e 40 aérios pela visão de sabedoria.
- Aceitas African Express? - Esbéquio retirou o cartão acastanhado da meia esquerda, entregando-o à bruxa.
- Sempre pagaste tudo assim, não foi? - quase lhe piscou o olho, mas conteve-se em frente dos clientes. Afastou-se um pouco, enquanto vestiam Nikas no fato de abre-latas, e regressou com o cartão, entregando-o a Esbéquio. - Bem, já têm o que queriam, agora saiam da minha barraca, antes que vos transforme em sapos.
- Mas não disse que só transformava à semana? - ousou Hernâni.
- Posso-te alugar um calendário para veres que é Segunda-Feira. - Deu uma risada triunfante enquanto fechava a porta de plástico.
Hernâni desabafou:
- Que puta.
- Gostam das minhas paredes pastel?- era notória a ironia na voz.
Dirigiu-se a uma das cadeiras, deitando um olhar a uma peculiar pintura na parede.
- Não tem nada, mas gosto da moldura. - por esta altura já todos encaravam a bruxa com um sorriso.
Sentou-se.
- Podem sentar-se, desde que não seja na cadeira. Está amaldiçoada. - riu para si, mas a verdade é que ninguém arriscou.
A mesa estava coberta com uma manta do que em tempos havia sido flanela, quadriculada no contraste entre vermelho e preto.
- Era a camisa de um dos clientes. Sentou-se na cadeira...
No centro da mesa havia uma bola de esferovite com estranhas manchas de diversas cores.
- Os mortos não têm preferência por material. - apontando para o cinzeiro à beira da bola, acrescentou - Já estão mortos, não lhes faz mal.
O grupo estava surpreendido com o que se escondia na barraca, mas sentou-se, procurando um espaço seco no chão húmido. A bruxa também se sentou, e principiou o ritual de comtemplação da bola de esferovite. Esfregava as mãos na esfera, produzindo o barulho que dilacerava os tímpanos dos presentes. Havia fechado os olhos, tremendo agora as pálpebras enquanto acariciava as manchas. Por fim, levantou-se, dirigindo-se a Nikas.
- Ora deixa cá ver...- murmurou enquanto a inspeccionava. - Já sei do que precisam.
Voltou-se para um baú inteligentemente escondido por detrás de uma secção pendente de papel de parede, do qual retirou uma enorme tecido vermelho. Deitou-o por cima de Nikas e, muito calmamente e com a plenitude de uma missão completada afirmou:
- Isto é um disfarce de abre-latas. Não faço transformações ao fim-de-semana.
- Hoje é Segunda-Feira. - notou Hernâni.
- Eu é que decido quando a semana deixa de acabar! - o chão humedeceu mais um pouco.
- A propósito, ela não é um cão, é uma cadela. Deve-se ter perdido da dona.
- Viu isso na vossa grande bola da sabedoria, ó ancestral anciã? - Hernâni estava prostrado ao proferir as palavras.
- Não, vi na coleira dela. - havia na sua expressão um impagável gozo em provocar os cabo-verdianos. - São 30 aérios pelo fato e 40 aérios pela visão de sabedoria.
- Aceitas African Express? - Esbéquio retirou o cartão acastanhado da meia esquerda, entregando-o à bruxa.
- Sempre pagaste tudo assim, não foi? - quase lhe piscou o olho, mas conteve-se em frente dos clientes. Afastou-se um pouco, enquanto vestiam Nikas no fato de abre-latas, e regressou com o cartão, entregando-o a Esbéquio. - Bem, já têm o que queriam, agora saiam da minha barraca, antes que vos transforme em sapos.
- Mas não disse que só transformava à semana? - ousou Hernâni.
- Posso-te alugar um calendário para veres que é Segunda-Feira. - Deu uma risada triunfante enquanto fechava a porta de plástico.
Hernâni desabafou:
- Que puta.
Subscrever:
Mensagens (Atom)